Jonas e o sucesso sem dor

A história do profeta Jonas é repleta de detalhes importantes, mas um dos mais significativos é este: como é que ele conseguiu dormir num navio chacoalhado por ondes terríveis? A embarcação a pique, marinheiros pagãos em preces para seus deuses e o profeta do Deus verdadeiro dormindo um sono pesado. Um sono da fuga, do abandono de uma missão muito bem compreendida, mas não assumida.

Quantos de nós estamos em uma situação em que, no nível do coração e da obediência, sabemos o caminho a seguir, mas no plano das decisões concretas continuamos a relutar, quando não a caminhar na direção oposta? Por vezes, a situação se torna ainda pior, quando deflagramos uma espécie de guerra surda contra as orientações de Deus. Ele fala e a gente finge que não escuta. Ele manda e a gente disfarça não o escutar ou o entender.

Começamos a impor nosso próprio discernimento e interpretação das ordens de Deus. Desenvolvemos linguagens e processos decisórios que correspondem mais a nossa agenda do que a de Deus. Ousamos reinterpretar nossa vocação. Damos outro rumo para o nosso chamado. Justificamos nossa mudança de ação e de percurso dizendo saber o que estamos fazendo, pois nos vemos com larga experiência. Como conclusão, fazemos a missão do nosso jeito.

O mau uso da experiência

Jonas não desobedeceu a Deus por ser ignorante ou não ter capacidade de interpretar a vontade divina. Não, ele não era neófito! Deus não enviaria um profeta sem tarimba espiritual até Nínive, a capital de um país que fazia tremer de medo o povo judeu (a Assíria era o império mais cruel daquela época). Jonas era um profeta maduro para tão implicada e difícil missão.

Neste ponto, porem residiu um grande perigo: a tentação da experiência acumulada. Foi de se achar com tarimba suficiente que o profeta se viu capaz de codeterminar a missão recebida. Tal comportamento funciona mais ou menos assim: se sou experiente, assumo a agenda de Deus com minhas próprias mãos. Vejo-me como maduro o suficiente para reinterpretar a vocação. Esquece quem me comissionou e que sou apenas um comissionado, um enviado, um servo, um mensageiro da Divindade. Como Jonas, nem nos damos conta do perigo que corremos…

Quem escreve a agenda da Igreja em que você congrega? Quem estabelece as prioridades? O sono de Jonas precisa nos incomodar porque, além do cheiro de fuga, pode ter o sabor perigoso da falsa sensação de missão cumprida, por meio de inúmeras atividades desfocadas da real missão que é a pregação do evangelho. Nesse caso, Deus decide falar frontalmente uma palavra com sua igreja, que lhe propicie um novo encontro com a graça e a misericórdia e a faça caminhar na direção da obediência ao mandamento missionário.

A ilusão do Sucesso sem obediência

Todos sabemos: Jonas deveria ir a Nínive, mas desejava seguir na direção de Társis. Fez de tudo pra chegar onde não deveria, ignorando o fato de que Nínive é o lugar que Deus nos dá, que Deus escolhe para nós. Por sua vez, Társis é o local de nossa escolha, onde desejamos estar. A diferença entre ambos é imensa, pois Nínive não apenas o local para onde Deus nos envia, mas para onde não queremos ir. É difícil de administrar, mas queremos ir pra Társis quase sempre.

Refletir o comportamento de Jonas a partir de uma autocritica é muito difícil, porque somos obrigados a admitir e a verbalizar o fato de que a vocação de Deus é uma experiência que se vive todo o tempo na contramão: nossa vontade versus a dele. E porque é assim, devemos suspeitar da vocação fácil! Desconfiar da vocação celebrada! Acautelar-nos diante de uma vocação cuja base seja composta de tapetes vermelhos, palmas e holofotes! Essa vocação é falsa, é de Társis!

Entretanto, e na maioria das vezes, a vocação que vem de Deus é experimentada contra nós, contra nossa vontade, contra nosso desejo, mas recheada do querer e do poder de Deus. Uma vocação que nos questiona, desafia e impulsiona a lutar, primeiramente, contra nós e, só depois, contra os principados e potestades e as hostes espirituais da maldade deste mundo tenebroso.

A violência e a crueldade de Nínive haviam chegado aos limites de Deus que, para dar um fim ao pecado, enviara seu profeta. Mas a um lugar assim, temos dificuldade de ir voluntariamente. Por isso, Nínive é o destino que não ansiamos. Talvez isso explique o motive de poucos de nós aceitarem ser missionários de Deus em cidades ou nações perigosas. É a velha ilusão do conforto sutil cuja a base é a desobediência ao mandado original de Deus.

A ilusão do sucesso sem dor

Na Bíblia, Társis surge em poucas oportunidades e representa uma espécie do local indefinido, de difícil delimitação geográfica. Não se conhece sua exata posição no mapa, mas na mente do povo judeu ela ficava para além-mar, com riqueza e comercio abundantes. Uma espécie de Eldorado, aquele que existe e não existe, o lugar com o qual se sonha, o que se fabrica no idealismo missionário.

Com Nínive dá-se o oposto, pois interessantes informações sobre elas são encontradas nas escrituras. É real e concreta com contornos históricos muito bem definidos. É violenta e má: a imoralidade e a corrupção são parte de sua identidade. Cidade perigosíssima! Em nível de vocação profética e ministerial, um missionário só vai a Nínive se for “empurrado”. Já para Társis a ida é espontânea, não faltando candidatos.

Poderíamos dizer que Társis é o local do sucesso sem dor, da conquista fácil. O lugar no qual religião é de mercado, em que se vende a Palavra, onde o evangelho é transformado em um produto, um objeto de consumo, estabelecido não pelo poder do Espirito Santo, mas por leis mercadológicas que o apresentam como um artigo de prateleira. O “missionário” vende, o cliente compra. Não há confronto entre verdade e mentira, Jesus e Satanás, céu e terra, reino de Deus e inferno. O “missionário” não se expõe, não corre perigo, não sofre represális e, aos olhos humanos, é um grande sucesso. O sucesso sem dor!

Nínive: espaço da manifestação da graça!

A caminhada da obediência missionária se dá entre a tentação de Társis e a experiência do chamado para Nínive. Não se trata, portanto, de uma questão geográfica, mas sim de fidelidade ao mandado de Deus. Uma fidelidade que requer constante disposição para ouvir a voz divina, que de forma sútil e poderosa luta para silenciar nossa voz, que vive a nos dizer: “Vá para Társis!”, contrapondo-se a voz de Deus: “Társis não vale a pena!”. Deus sabe que a aposta na ilusão nunca traz resultados satisfatórios e que Nínive é o único destino ao qual se pode ir em seu nome.

Agora, leia com atenção: exatamente por ser cheia de violência, maldade e pecado, Nínive se transforma no local da manifestação da graça e da misericórdia de Deus. Apesar da cidade, apesar de Jonas, ambas foram derramadas com poder sobre crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, moradores da infeliz cidade. Ainda que em nossa mente “tarsiana”, Nínive seja o lugar em que a misericórdia não sobreviva, posto cremos que uma cidade que semeie a morte sempre colherá, Deus não executou seu proclamado juízo sem antes dizer a Jonas: “Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive e clama contra ela, porque sua malícia subiu a minha presença” (Jonas 1.2).

Depois de muita luta contra Deus, o profeta foi e pregou o juízo dívino: “E começou Jonas a entrar pela cidade caminho de um dia, e pregava, dizendo: ‘Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida’”(3:4). E aconteceu aquilo que Jonas não desejava: o povo de Nínive se arrependeu de seus pecados e se converteu de seus maus caminhos. Do maior ao menor! “E os homens de Nínive creram em Deus; e proclamaram um jejum; e vestiram-se de saco, desde o maior até o menor.” (3:5).

O juízo se desfez ante o arrependimento! As mentes pecadoras, por fim, tiveram a oportunidade de se encontrar com a palavra de Deus, descortinando-se um novo tempo, uma nova vida, uma nova esperança. De fato, a conversão sempre abre uma porta que antes não parecia existir. O evangelho faz o futuro emergir com novas possibilidades, porque, para além do juízo, o próprio Deus reintroduz a possibilidade da misericórdia, pelo recurso da graça de Cristo Jesus.

Conversão radical e coletiva! Uma cidade para Deus! Sonho de todo missionário fiel. A graça de Deus é tão radical e surpreendente em Nínive que o profeta permanece sob o sol quente, nervoso, querendo morrer, porque Deus salvou crianças, jovens, adultos e idosos. Um tipo de graça e misericórdia que não cabia na teologia do profeta, tanto quanto infelizmente, não cabe na crença de muitos, até hoje. Um Deus assim, gracioso e misericordioso, o profeta não entende e rejeita.

Os ninivitas, por sua vez, foram alcançados pela graça que o pregador refutou. Diz a Bíblia que Jonas se encheu de fúria, uma zanga em resposta a bondade de Deus! Como, isso? Gente que se irrita com a graça, que se magoa com a misericórdia, que não está preparado para atender um Deus que se mostra imprevisível. Nínive é testemunha viva da radicalidade da graça e da profundidade da misericórdia de Deus. Dádivas sobre as quais nenhum missionário tem controle, porque Deus não lhe dá a prerrogativa de serem administradas. Na verdade, o mais carente dessa graça é o profeta e é quem mais traz problemas para Deus. Foi Jonas quem deu prejuízo aos marinheiros, quem pregou à força e se irritou com o estrondoso sucesso de sua própria mensagem. Um sucesso com dor!

Atenção: bem antes de oferecer sua graça e sua misericórdia aos pecadores, Deus deseja derramá-las em nossas vidas, pois intenta nos enviar até Nínive, o quanto antes. Sim, esse é seu plano! Se em vez de fugir, obedecemos, seguramente experimentaremos grande e doloroso sucesso. Uma dor que nos deixará cada vez mais próximos dele, a ponto de podermos ouvir detalhes sobre como atua para salvar os pecadores: “E não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que estão mais de cento e vinte mil homens que não sabem discernir entre sua mão direita e sua mão esquerda, e também muitos animais?” (4:11).

Por: Pr. José Lima

Fonte: Revista Iap em Ação 

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