Entre dores e amores: comunhão na comunidade

“Amar é sempre ser vulnerável. Ame qualquer coisa e certamente seu coração vai doer e talvez se partir. Se quiser ter a certeza de mantê-lo intacto, você não deve entregá-lo a ninguém. Envolva-o cuidadosamente em seus hobbies e pequenos luxos, evite qualquer envolvimento, guarde-o na segurança do esquife de seu egoísmo. Mas nesse esquife – seguro, sem movimento, sem ar – ele vai mudar. Ele não vai se partir – vai tornar-se indestrutível, impenetrável, irredimível. A alternativa a uma tragédia ou pelo menos ao risco de uma tragédia é a condenação. O único lugar onde se pode estar perfeitamente a salvo de todos os riscos e perturbações do amor é o inferno”.

[C. S. Lewis em Os Quatro Amores]

Onde existem pessoas, estamos sujeitos ao sofrimento

Cresci no ambiente de comunhão da comunidade cristã. Ali, aprendi, fui desafiada, encorajada, nutrida e também ferida e decepcionada. Conheci o gosto da tristeza, da traição, da indiferença. Onde existem pessoas e relacionamentos, estamos sujeitos ao sofrimento das relações. Por isso me aproximo do tema de maneira realista, como quem experimentou da ambiguidade deste contexto, mas também experimenta o amor e esperança viva do potencial curador da comunidade cristã através da presença transformadora do Cristo em nós.

Depois de experimentar a dor na comunidade, este trecho de C.S. Lewis em Os quatro amores me relembrou a tentação e os riscos da estagnação neste lugar de dor e isolamento, e me encorajou a caminhar na direção da reconciliação e da renovação do amor pela comunidade. Lembrei que também sou parte da comunidade com potencial de agregar ou ferir. Fui relembrada da aridez da vida quando nos isolamos e dos riscos que isto representa à saúde emocional e espiritual. Meu trajeto de cura também foi em comunidade, experimentando o potencial reconciliador e restaurador que o Espírito Santo promove em nosso meio. Estou falando do corpo de Cristo, família que nos foi dada e que encontramos espalhada ao redor do mundo. Esta expressão visível de Deus que nos identifica para além de traços culturais e idiomas, este corpo de Cristo que se norteia pela Palavra e busca viver essa dinâmica comunitária sob este paradigma.

A fé cristã é relacional, comunitária. É pessoal, porém não é privada. Precisamos uns dos outros para crescer. É desejo de Deus que estejamos todos reunidos em nossa diversidade, promovendo unidade, sendo instrumento e um sinal visível com a missão de levar a luz de Cristo a todos os homens.

Apesar da natureza espiritual da comunidade cristã, precisamos lembrar de que consiste em um agrupamento de seres humanos feridos que necessitam ser resgatados, redimidos e que caminham num constante processo de transformação e conversão de seu próprio coração ao coração de Deus. Os conflitos relacionais serão frequentes, as dores serão inevitáveis, mas somos o povo da reconciliação e isso precisa ser praticado em nosso meio.

O cristianismo pode ser descrito como um chamado à amizade. Como seguidores de Cristo, somos convidados a um relacionamento com Ele, em que não somos mais chamados de servos, mas amigos. É de grande importância reconhecer a necessidade de integrar o mandamento de Deus para amar a Deus com todo o nosso coração e também amarmos nosso próximo. A consciência de que a amizade de Deus para nós é um presente define a prerrogativa de todas as outras relações a serem estabelecidas em comunidade. Assim como a amizade de Deus para nós é graça, as pessoas que Ele nos dá em amizade também são graça para nós. Essa integração é fundamental para a vida cristã e estabelece o paradigma relacional em que devemos viver.

O modelo de interdependência é retratado na vida da Trindade e foi vivido por Jesus no mundo como ele encontrou pessoas. Como Jesus vivia entre amigos e em comunidade, e quando se encontrou com pessoas, ele mostrou a graça presente na interdependência. Em nosso relacionamento com o Cristo a consciência de nossas vulnerabilidades nos confronta com a necessidade de uma vida de humildade e reconhecimento de que somos seres dependentes que precisam da graça de Deus e essa relação nos ensina a deixar nosso isolamento. Uma vida de amizade com Deus presume uma aliança e nossas amizades espirituais também devem ser cultivadas como uma aliança de quem assume um compromisso alegre de uma vida compartilhada à medida que somos moldados à imagem de Cristo.

Sobre a tensão entre dependência e independência, John Stott aborda o tema ao lembrar aos cristãos que, na pessoa de Cristo, Deus nos ensinou que a dependência tem uma dimensão que precisa ser abraçada e que não afeta nosso estado de dignidade como pessoas:

“A recusa de depender dos outros não é uma marca de maturidade, mas de imaturidade (…) Nós chegamos ao mundo totalmente dependentes do amor, cuidado e proteção dos outros. Passamos por uma fase de vida quando outras pessoas dependem de nós. E a maioria de nós vai sair deste mundo totalmente dependente do amor e dos cuidados dos outros “.

A cultura fala contra a dedicação a relacionamentos profundos e significativos. Somos ensinados a viver vidas autônomas e independentes e, em vez de compartilhar nossas vulnerabilidades e fraquezas para um processo de crescimento e cura e estimulados a aprender a gerir sozinhos essas características da melhor maneira possível na tentativa frustrada de impedir novas interferências em outras áreas de nossas vidas. Através do nosso desenvolvimento como pessoas, aprendemos a temer o desconhecido, e ao fazê-lo, ignoramos as contribuições e as perspectivas que os relacionamentos podem nos trazer ou de como ele nos desafiará para mudanças e crescimento.

Afinal, o que esperar da comunidade?

Essa noção de limitações e possibilidades é o que dá o tom para o desenvolvimento de relacionamentos saudáveis. As pessoas vão ao encontro da comunidade sobrecarregadas de expectativas e culpa por não ser o que deveriam ser. Embora uma comunidade ideal não exista, uma comunidade deve ser onde as pessoas entendem que são aceitas, apesar de suas fraquezas e limitações existentes. Onde seus dons e possibilidades são incentivados e ativamente envolvidos. Onde oferecemos oportunidades de recomeço e reconciliação.

Ao nos aproximarmos como comunidade cristã, é importante perguntar o que posso ser em comunidade, o que posso oferecer e como posso caminhar. A grande dificuldade dos nossos dias é o caminho inverso, o questionamento do que a comunidade pode me oferecer e como pode satisfazer minhas necessidades e contribuir para a minha vida. Quando foco em Deus e no outro, o Espírito Santo trabalha nas minhas fragilidades enquanto ofereço o que posso e quem sou à comunidade, enquanto sirvo as pessoas ao meu redor e isso é tratado no coração de outros da mesma forma. Quando adentro a comunidade com esta perspectiva, administrar expectativas, tolerar frustrações e permanecer em unidade torna-se um caminho mais viável.

Na comunidade cristã, com nossas práticas espirituais, temos o espaço para celebração, oração, confissão, perdão, transformação. Precisamos uns dos outros, precisamos de Deus em nós e entre nós. Que nas diferentes fases da vida e momentos de nossa caminhada com Deus, possamos encontrar esperança de nutrir, recomeçar e reencontrar a beleza da comunhão com Ele e uns com os outros. Quanto a mim, sugiro: comece ao redor da mesa, nutrindo a fé e compartilhando a vida. Não despreze o potencial dos pequenos encontros, transformadores, que se expandem para toda a comunidade.

Trechos do texto de Karen Bomilcar do site Aliança

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